Larry Flynt é um editor norte-americano da Hustler, revista masculina que nos anos 70 ficou célebre pelos excessos na linguagem pornográfica e mal educada. A Hustler rendeu a Larry Flynt muita dor de cabeça na justiça, culminando em 1978 num atentado que o deixou paraplégico. Alan Isaacman, advogado de Flint, defendeu-o no julgamento assim:

“Estamos discutindo uma questão de gosto, não de Lei. E é inútil discutir gosto – muito menos nos tribunais. (…) Na verdade, tudo o que esta discussão faz é permitir a punição de discursos impopulares (…) – e estes são vitais para a saúde da nação. Não estou tentando convencê-los de que deveriam gostar do que Larry Flynt faz. Eu não gosto do que ele faz. Mas o que eu gosto é de viver num país onde você e eu podemos tomar esta decisão por nós mesmos. Eu gosto de viver num país no qual eu possa pegar a revista Hustler, lê-la se quiser ou atirá-la no lixo se acho que ali é seu lugar. Ou não comprá-la. Gosto de ter esse direito, me importo com ele. E vocês deveriam se importar com ele também, porque vivemos num país livre. Dizemos muito isso, mas às vezes nos esquecemos do que significa. Vivemos num país livre. Esta é uma ideia poderosa, é um jeito maravilhoso de se viver. Mas há um preço para esta liberdade, que é, às vezes, ter que tolerar coisas das quais não gostamos necessariamente.

Se começarmos a cercar com paredes aquilo que alguns de nós julgam como sendo obsceno, acordaremos um dia e perceberemos que surgiram paredes em lugares que jamais esperaríamos que surgissem. E aí não poderemos ver ou fazer nada. E isto não é liberdade”.

Recentemente o juiz Guilherme Madeira Dezem, da 44ª Vara Cível de São Paulo, analisou um pedido da Defensoria Pública para que fosse removido da internet parte do conteúdo disponível nas redes sociais dos “Irmãos Piólogos” e no canal de Youtube “Mundo Canibal”. Segundo a Defensoria, o conteúdo é violento e discriminatório contra mulheres e a população LGBT.

Na sentença, o juiz fez uma série de críticas ao conteúdo citado, classificando-o como repugnante. Porém, o juiz ressaltou que isso não é motivo suficiente para censurar o material.

Ele explica que o Supremo Tribunal Federal tem um posicionamento consolidado, conforme a Constituição, de que as manifestações de pensamento só podem ser restringidas caso configurem ilícito penal, o que, segundo o juiz, não é o caso do material analisado. Ouça o que ele escreveu:

“Não pode o Estado limitar a liberdade de expressão se não houver ilícito civil ou crime praticado pelos réus. Neste caso estão em uma linha limítrofe e, nesta linha, tenho por princípio que, na dúvida, deve prevalecer a liberdade de expressão”.

O juiz alerta para o crescimento da intolerância no país. “Esta intolerância não pode ser aceita, pois a base da sociedade está no seu caráter múltiplo”, afirmou, lembrando que o Direito não é pautado por juízos estéticos baseados em opiniões, sentimentos e emoções.

Segundo o juiz Guilherme Dezem, por mais que o material cause desconforto e repugnância, os autores têm o direito de se manifestar artisticamente. Ele diz: “Afinal de contas, é disso que se trata a liberdade de pensamento e de expressão: liberdade para as ideias que eu não concordo, sob pena do outro também querer limitar as minhas ideias com as quais ele não concorda.”

Sem citar expressamente nenhum caso, o juiz lembrou situações recentes como a exposição Queermuseum — Cartografias da diferença na arte brasileira, patrocinada pelo banco Santander e que foi cancelada antes mesmo de abrir devido a protestos contrários ao seu conteúdo.

“O Brasil vive, hoje, delicado momento neste tema, e o perigo está na esquina da nossa era: grupos dos mais variados espectros político-ideológicos querem tentar limitar a ação de outros grupos. Exemplos, nesta data, não faltam. Se a pressão de indivíduos para o cancelamento de determinada manifestação de ideia é delicada, a limitação da ideia pelo Estado é ainda mais perigosa. Há um fio que une todos estes casos, que se trata da intolerância pela ideia do outro. Esta intolerância não pode ser aceita pois a base da sociedade está no seu caráter múltiplo”, afirmou o juiz.

Pois é. Isso acaba de acontecer aqui no Brasil, e não há como não remeter ao advogado de Larry Flint: “… vivemos num país livre. Dizemos muito isso, mas às vezes nos esquecemos do que significa. Vivemos num país livre. Esta é uma ideia poderosa, é um jeito maravilhoso de se viver. Mas há um preço para esta liberdade, que é, às vezes, ter que tolerar coisas das quais não gostamos necessariamente. Se começarmos a cercar com paredes aquilo que alguns de nós julgam como sendo obsceno, acordaremos um dia e perceberemos que surgiram paredes em lugares que jamais esperaríamos que surgissem. E aí não poderemos ver ou fazer nada. E isto não é liberdade”.

A maioria das pessoas que conheço sempre defendeu a democracia. Pelo menos em público. É certo que muitos, quando recolhidos à sua intimidade, clamam por mais uns cassetetes na praça para botar ordem no país, mas raramente têm coragem de defender isso abertamente.

Defender a democracia é de bom tom, é “do bem”, afinal esse é o regime que estabelece que todos os homens são iguais perante a lei, não é? Quem pode ser contra isso? Mas muita gente acha que nem todos os homens são iguais perante a lei, especialmente se forem os fracos e oprimidos. E aparentemente em nome da defesa desses fracos e oprimidos começamos a assistir a uns movimentos que buscam atacar certos valores fundamentais da democracia. A liberdade de expressão por exemplo.

Veja só, uma coisa que precisa ficar clara já, para que tenhamos uma percepção correta do que tratarei neste programa. O princípio democrático é o seguinte: todos os homens são iguais perante a lei. E para garantir esse princípio, criamos aquilo que chamamos de Justiça.

É a justiça que assegura que o fraco e oprimido não será punido apenas por ser fraco e oprimido. Mas ela também garantirá que o fraco e oprimido não será poupado de seus crimes porque fraco e oprimido, entendeu? E o conceito vale também na contrapartida: o forte e poderoso não será protegido e também não será punido por ser forte e poderoso, sacou? Fracos e oprimidos, fortes e poderosos são iguais perante a lei. Esse é um princípio inclusive constitucional, que deve ser indiscutível e inegociável.

Um pobre coitado que rouba deve ter o mesmo tratamento que um rico privilegiado que rouba. Por isso dizemos que a Justiça é cega. No entanto é verdade que quanto mais poderoso o sujeito, mais chance ele tem de driblar a justiça, pois terá dinheiro para contratar advogados habilidosos para encontrar brechas na lei, manipular os processos, pressionar ou corromper as autoridades se necessário. Mas preste atenção agora: isso não tem a ver com o conceito de justiça ou de democracia. Tem a ver com processos.

Vou repetir de forma mais clara: os poderosos escapam das garras da justiça não porque o conceito de justiça da democracia está errado, mas porque têm recursos para manipular os processos. Me refiro aos processos, aos métodos, à forma como as coisas são feitas.

É no processo – e não no conceito – que está o problema. Enquanto estão no papel, as leis bem escritas são perfeitas. Mas para serem aplicadas precisam de pessoas, de seres humanos.

Albert Einstein disse uma vez que são três as forças que movem o mundo: o medo, a cobiça e a estupidez.

E é aí que a porca torce o rabo… Quem tem poder sabe como trabalhar o medo, a cobiça e a estupidez dos responsáveis pela aplicação das leis.

Algumas pessoas acham que a democracia tem seu valor por assegurar que a vontade da maioria prevaleça. É verdade. Mas existe um segundo aspecto que, ao menos para mim, é ainda mais importante: a democracia assegura que a minoria possa dar sua opinião livremente, inclusive contra a vontade da maioria, sem ter a cabeça decepada.

A liberdade para poder dizer “não” é o que verdadeiramente define uma democracia. Quem tentou dizer “não” para Fidel Castro, Ahmadinejad, Mao Tse Tung, Stalin, Adolf Hitler e outros, sabe do que estou falando. Percebeu? Hitler subiu ao poder e sustentou-se por vontade da maioria, mas pode-se dizer que aquela Alemanha era uma democracia?

Então deixando claro: o que distingue uma democracia de uma ditadura é a liberdade dos que discordam dela poderem dizer não.

Agora note bem: a liberdade de poder dar sua opinião independe do conteúdo de sua opinião. Numa democracia você pode dizer o que quiser, mas se você decidir defender, por exemplo, uma tese comprovadamente racista, transformando sua opinião numa ofensa ou discriminação, terá de se ver com a lei. Sacou?

Liberdade para dizer o que quiser, desde que assuma as consequências.

Resumo: o que define uma democracia é a liberdade de dizer o que você quiser, quando quiser e como quiser. Mas essa liberdade não deve dar a ninguém a impunidade para agir contra e lei, contra a moral, contra aquilo que chamamos de “bons costumes”.

Aceitar que alguém exponha uma opinião contrária à sua, por mais absurda que você julgue a opinião, é regra da democracia. Quando você não aceita que a pessoa exponha a opinião, você não é um democrata. Entenda bem, não é que você deva CONCORDAR com a opinião e sim ACEITAR que ela possa ser exposta. Conviver com quem pensa diferente é o grande teste para um democrata, mas isso é difícil, sabe?

A gente se irrita e rapidamente começa a arquitetar formas de se livrar do pentelho que nos enche o saco. E esse conceito de “se livrar” é muito abrangente… Vai de um fingir que concorda só para ele parar de encher o saco até um “deletar”, que pode ser virtual ou real…

Só que partir para exterminar o adversário não pode ser feito assim, na cara dura. Isso é contra a democracia, contra a liberdade. E dizer-se contra elas é feio, não é? É então que começam a surgir os truques…

Um dos truques é usar conceitos da democracia para atacar a própria democracia. Conceitos que “desligam o disjuntor”, sabe? Por exemplo, “direitos humanos”. Quem pode dizer que é contra os direitos humanos?

Algum tempo atrás surgiu um projeto, que reaparece de quando em quando, chamado de “Controle Social da Mídia”. Depois foi chamado de “Democratização da Imprensa”. Esse projeto parte da intenção de “regulamentação”: vamos desconcentrar a propriedade da mídia, para evitar que grupos econômicos poderosos controlem a informação (e o poder), vamos impedir que concessões sejam dadas a políticos; vamos disseminar uma rede pública de rádio e televisão e de veículos comunitários para fazer com que os veículos sejam responsáveis pelo que publicam e divulgam!

Quem pode ser contra isso? Além disso, vários países democráticos já tem um controle assim…

E mais recentemente, surgiram as agências de fact check, organizações que vão checar se as notícias veiculadas são verdadeiras ou não. Tudo em nome da defesa da verdade.

Quem é que pode ser contra isso?

Pois é aí que vem o perigo… Quem será o juiz? Quem vai definir subjetivamente o que caracteriza desrespeito aos direitos humanos? O mesmo juiz ou autoridade que define que invadir propriedade privada não é crime? Que trata caixa dois como “recursos não contabilizados”? Que diz que “classe média” é quem ganha mais de mil e seiscentos reais por mês? Percebeu a armadilha? Você vai, na maior das boas intenções, entusiasticamente defender os direitos humanos, a biodiversidade, o direito dos carentes, dos desvalidos… E assim cai na armadilha da censura. Quando perceber, terá sido tarde demais.

Você está seguindo meu raciocínio? Democracia é ter a liberdade de dizer “não”, mesmo que você esteja em minoria. Democracia é tolerar conviver com quem pensa diferente. Mas democracia não é poder dizer e fazer o que quiser quando quiser. Há um limite, que começa naquilo que seu avô ensinou a você: sua liberdade vai até onde começa a liberdade do outro.

Essa liberdade tem de ser defendida ferozmente, mas há que se ter cuidado para que a defesa da liberdade não se transforme numa arma contra a liberdade.

E então? Vamos ao resumo?

O que define a democracia não é a prevalência da vontade da maioria, mas a liberdade de poder dizer “não” das minorias.

Saber conviver com quem pensa diferente da gente é nosso desafio. Quem não sabe tenta eliminar aquele que pensa diferente, mas como isso é “feio”, tenta usar os conceitos da própria democracia para atacá-la. E quem não está preparado para compreender as armadilhas acaba dando suporte a teses totalitárias. E quando percebe, o bonde passou…

Quer saber minha opinião? Só existe uma espécie de censura que é válida e que é brilhantemente resumida numa frase que eu encontrei solta na internet e adaptei:

A única forma válida de censura de ideias é o direito que as pessoas têm de não dar a menor bola pra elas.

Pra terminar, uma frase do professor alemão Martin Grundler:

“É fácil relevar a liberdade quando ela nunca foi tirada de você”





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